Peregrinar no século XXI

"Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar." 
António Machado, Extracto de Proverbios y cantares (XXIX)


Peregrinar não se resume apenas ao acto de caminhar (no caso da peregrinação a pé), ou executar um trajecto com um determinado número de quilómetros; é reconhecido que peregrinar carece caminhar-se motivado "por" ou "para algo". A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa.

“Não andeis ansiosos pelo dia de amanhã...Basta ao dia o seu próprio mal” Mateus 6.
“Olhai os lírios dos campos” Mateus 6, 28. 

Cristo dizia que as preocupações exageradas com a sobrevivência, os pensamentos antecipatórios, os problemas virtuais, a desvalorização do ser em relação ao ter, etc., cultivavam uma ansiedade doentia. Ele era um grande sábio, e as causas que apontou não mudaram no mundo moderno; pelo contrário, intensificaram-se.

Quanto mais bens materiais conquistamos, mais queremos conquistar. Parece que não há limites para a nossa insegurança e insatisfação. Preferimos ter bens do que sermos tranquilos, alegres, coerentes. Segundo o psiquiatra Augusto Cury em
 "Análise da Inteligência de Cristo – O Mestre dos Mestes", esta inversão de valores cultiva a ansiedade e os seus frutos: insegurança, medo, apreensão, irritabilidade, insatisfação, angustia... fazemos seguros de vida, da casa, do carro, mas, ainda assim, não resolvemos a nossa insegurança.

"Não leveis sacolas de viagem, nem uma túnica a mais, segundo par de sandálias ou um cajado; pois digno é o trabalhador do seu sustento. Em qualquer cidade ou povoado em que entrardes, procurai alguém digno de vos receber; ficai nesta casa até vos retirardes." Mateus 10, 10

Não seria este um chamado a confiar em Deus, no seu plano, e nas pessoas que Ele porá no nosso Caminho, nomeadamente quem nem conhecemos?

Governamos o mundo exterior, mas temos enorme dificuldade em gerir o nosso mundo interno, o dos pensamentos e das emoções. Somos subjugados por necessidades que nunca foram prioritárias, subjugados pelas paranoias do mundo moderno: do consumismo, da estética, da segurança. Assim, a vida humana, que deveria ser um espetáculo de prazer, torna-se um espetáculo de terror, de medo, de ansiedade. Nunca tivemos tantos sintomas psicossomáticos: cefaleias, dores musculares, fadiga excessiva, sono perturbado, transtornos alimentares, etc.

E não sabemos extrair o prazer dos pequenos eventos da vida porque a ansiedade estanca esse prazer.

Estamos aplastados por informação, como se a memória humana fosse um arquivo de informações que conduz o homem a ser retransmissor delas. Este erro educacional irá intensificar-se cada vez mais, à medida que o homem queira ter uma memória e uma capacidade de resposta que se assemelha à dos computadores. Mas os computadores são escravos de programas lógicos. Eles não pensam, não têm consciência de si mesmos e, principalmente, não se emocionam.


Muitos são os que vivem o paradoxo da cultura e da miséria emocional. Têm diversos títulos académicos, são cultos, mas, ao mesmo tempo, são infelizes, ansiosos e hipersensíveis, não sabem trabalhar as suas contrariedades, frustrações e as críticas que recebem, mesmo consumindo os diversos livros de auto-ajuda que hoje em dia são publicados. Mas, segundo Cury (1999), não está sob o controlo consciente do homem o registo das informações na memória, como também não está o ato de apaga-las ou deletá-las. Mas é possível reescrevê-las.

A nossa maneira de pensar é, às vezes, radical e inquestionável porque nos comportamos como um semideus. Pensamos como um ser absoluto, que não duvida do que pensa, que não se recicla.

Resta aprender a interiorizar-nos e a aplicar a arte da dúvida e da crítica sobre nós mesmos, para não arriscar-mos a cair no autoritarismo, na agressividade, violando tanto os direitos dos outros como os nossos. 

É que, paradoxalmente, vamos adquirindo cultura, mas logo passamos a ver o mundo de acordo com os conceitos, paradigmas e parâmetros contidos nessa mesma cultura, e passamos a ser regidos pela ditadura do preconceito, sem ter consciência disso. O psiquiatra Cury defende que o preconceito está intimamente ligado com a construção de pensamentos e perante os estímulos fazemos automaticamente a leitura da memória e construímos pensamentos que contêm preconceitos sobre esses estímulos. Por exemplo, quando estamos diante do comportamento de alguém, usamos a memória e produzimos um preconceito sobre esse comportamento. Assim, frequentemente temos um conceito prévio dos estímulos que observamos, por isso consideramo-los corretos, imorais, inadequados, belos, feios, etc.

É que a memória funciona como um canteiro de dados para que o homem se torne um construtor de pensamentos, e Cristo estava sempre a estimular os seus discípulos a se interiorizarem e a se repensarem. Ensinava muito, dizendo pouco. Ele sabia que os pensamentos não se registam na mesma intensidade, que havia determinadas experiências que obtinham um registo privilegiado no inconsciente da memória. Por isso, sempre que queria ensinar algo complexo ou estimular uma função importante da inteligência, como aprender a se doar, a pensar antes de reagir, a reciclar a competição predatória, Cristo usava gestos surpreendentes, que chocavam a mente das pessoas, e marcavam para sempre a sua memória.
Cristo já discursava sobre a energia emocional, quase vinte séculos antes de Goleman (Goleman, Daniel, Inteligência Emocional, Rio de Janeiro, Editora Objectiva, 1995). Dava a entender que a psique humana era um campo de energia que possui um fluxo contínuo e inevitável de pensamento e emoções e que este fluxo era a maior fonte de entretenimento humano, pelo que é neste que devemos investir para enriquecer, tornar estável e continuo. Transformar.

Na peregrinação, formatamos o nosso computador interno, reaprendemos o prazer de ajudar e ser ajudados quando precisamos, ser saciados quando com fome ou sede, dando o devido valor aos sentidos no seu estado mais puro, uma vez silenciada a construção de pensamentos e ideias que, normalmente nos desgastam. 

Peregrinando durante o tempo suficiente, asseguramo-nos de que nos libertamos do cárcere intelectual em que nos deixámos prender, para uma nova oportunidade de redescobrir o mundo, e de nos redescobrir nele. Um mundo que se entende melhor.






@Susana Karina